sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Realidade vs. Expectativas





Disse-vos, há alguns posts atrás, que viver com uma IDP depende da maneira como cada um encara a vida e o que vai sucedendo no quotidiano. É verdade, sim, mas também é verdade que não é por alcançar uma determinada idade que a situação se torna mais fácil. Como mencionei anteriormente, houve brechas que se abriram durante adolescência e com as quais não eu soube lidar. Pensava que essas brechas tinham desaparecido com o tempo, mas devo admitir que algumas ainda cá estão, escondidas algures no meu subconsciente.

Era espectável, talvez, alcançar alguma normalidade emocional com a idade adulta, mas na realidade ainda me sinto "descompensada". É fácil saber o que queremos, mas encontrar os meios para alcançar os nossos objectivos, nem tanto. Porque, seja como for, há sempre uma réstia de receio, uma coisa minúscula qualquer que nos faz continuar a duvidar.

Por exemplo, uma das coisas que mais me assusta, dada a injustiça que isso seria, é que não me selecionem numa entrevista se disser que tenho uma IDP. Felizmente, nunca ficaram a olhar para mim como se fosse maluca, mas quer dizer, esperamos que as pessoas tenham um certo entendimento das coisas (óbvio que nem toda a gente vai procurar ou querer saber do que se trata uma imunodeficiência primária), mas naturalmente sentimo-nos  frustrados quando olham para nós como se tivéssemos dito o maior impropério da História! Na minha opinião é ainda pior se as pessoas forem condescendentes comigo, porque me irrita profundamente a simples ideia que de me verem como alguém fragilizado.

Acontece que a maioria das pessoas escolhe ser ignorante (aprendi isso durante a minha fase de reserva) e quando se vêem perante alguém que tem uma experiência de vida diferente, olham-na como se fosse um ser estranho. É inevitável (ou quase) que quando alguma coisa ou alguém é diferente do padrão social considerado normal, que esse algo ou alguém seja marginalizado. Era o que eu pensava há mais de dez anos: que esta patologia me marcava como "diferente" no sentido de não pertencer à sociedade infanto-juvenil em que vivi.

Essa sensação acomodou-se no meu subconsciente durante demasiado tempo e expulsá-la definitivamente tem-se revelado difícil, porque ainda tenho brechas mal resolvidas. Mas já não me importo tanto com o facto de me integrar ou não, porque aprendi que temos de ser nós próprios e que não vale a pena tentarmos ser como todos os outros: cada um de nós é uma pessoa única com qualidades e defeitos, com sonhos, medos e expectativas, mas sobretudo, com a capacidade de decidir a sua própria vida. E isso é tudo o que importa.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Idade Adulta





No seguimento do post anterior, devo dizer que a minha fragilidade emocional, embora amenizada, ainda se encontra presente e acaba por vir à tona cada vez que as minhas emoções superam o meu raciocínio. Há muita coisa que vivi na adolescência que, se pudesse, provavelmente faria de outra forma, mas há outras que não posso alterar. Para além disso, a minha qualidade de vida passou por uma mudança muito significativa quando cheguei aos dezoito anos.

Como as minhas veias são demasiado finas e começaram a ficar calejadas de tantas punções, o meu médico propôs alterar a forma como a reposição de imunoglobulina era administrada e passei a fazer o tratamento por via subcutânea em vez de via endovenosa. Com este tipo de tratamento senti diferenças significativas, como por exemplo: o facto de não sentir um pico de energia que se desvanece ao fim de duas semanas, ou sentir mais resistência ao esforço físico moderado. Uma alternativa cheia de vantagens: deixei de ter de faltar, de ter de ir ao hospital com tanta frequência, ganhei alguma autonomia, etc. Além disso, ao transitar do acompanhamento pediátrico para o acompanhamento adulto, comecei a ir às consultas e ao exames sozinha, ou seja, passei a responsabilizar-me pela minha saúde (algo que considero muito importante para alguém que cresça com uma patologia semelhante à minha).

Foi também nesta altura que entrei para a faculdade, comecei a namorar e me cruzei, através de um encontro de pessoas com IDP realizado em Coimbra, com pessoas com imunodeficiência primária. Apesar das minhas baixas espectativas, as minhas novas relações sociais foram evoluindo naturalmente, embora sejam uma minoria as que se solidificaram, porque apesar de as pessoas tentarem compreender e desvalorizar, no sentido de não me deixarem de lado por causa desse detalhe, ainda sou lenta a confiar, uma vez que os velhos hábitos de auto-preservação dificilmente desaparecem.

Digamos que tenho feito o melhor que posso para viver um dia de cada vez, mas não é fácil e, por vezes, sinto-me novamente aquela adolescente reservada sempre do olhos postos no chão. Isto porque, ser-se adulto implica encarar diversas responsabilidades complicadas que se tornam mais difíceis quando se tem uma imunodeficiência primária.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Adolescência





Quando digo que a adolescência foi a pior fase da minha vida, quero dizer que foi mesmo! Foi a fase da raiva e da frustração a nível social e emocional. Mas, começando pelo princípio: quando tinha dez anos deu-se, com a entrada para o 5º ano, a primeira grande mudança: escola nova, turma nova, disciplinas novas, regras novas. Tudo isto só por si já é difícil de gerir, mas quando vem acompanhado pela rejeição por parte de uma colega em cujo entender eu "era muito lenta", o complicómetro entra em acção a 200 km/h!

Nessa altura a minha fraca autoconfiança estilhaçou-se e, como não soube digerir a questão, votei-me a um isolamento social muito pronunciado. Abespinhava-me com qualquer provocação, levava tudo a sério e durante muito tempo não deixei que ninguém se aproximasse nem me tentei aproximar. Foi a partir daí que comecei a questionar-me por que razão era sempre eu que ficava doente facilmente, por que razão me sentia sempre deslocada e diferente?

Refugiei-me na leitura e na escrita, como forma de me evadir de uma realidade que me desapontava todos os dias. Durante muito tempo faltou-me a capacidade social de comunicar com as pessoas (algo muito frágil ainda hoje) e emocionalmente vivi uma dura batalha comigo mesma à procura de respostas. Depois de um 2º ciclo complicado, o 3º também não começou nada bem, porque fiquei numa turma que não se poderia aplicar de turma, pois não passava de pequenos grupos de alunos enfiados na mesma sala de aula. E mais uma vez, eu estava deslocada, porque aquela era a pior turma da escola e eu era o género de menina calada e bem comportada na sala de aula, que não arriscava responder para não parecer tola; para além de que continuava a ter de faltar uma vez por mês para fazer o tratamento e, por vezes, para fazer exames e as minhas defesas ainda fraquejam muito.

Por essa altura, aos doze anos entrei em "guerra aberta" com a minha patologia. Durante algum tempo fiquei cega pela minha fúria obstinada contra a medicação preventiva que tenho de fazer todos os dias, porque pela perspectiva que tinha na altura, achava que "se não me cura, então não vale a pena"e recusava-me frequentemente a tomar os medicamentos. A minha mãe chegou a levar-me a um psicólogo, embora  não tenha surtido efeito, porque  eu queria a compreensão dos meus pais, não de um estranho qualquer que tentava analisar-me como se eu fosse um manuscrito antigo. Esta "guerra" resultou numa pneumonia grave aos treze anos, mesmo antes de iniciar o 8º ano. O que mais me irritou nessa altura nem foi ficar doente (embora isso me frustrasse), mas sim a condescendência da médica das urgências para comigo, a dizer que seriam apenas dois dias, quando eu sabia perfeitamente que seria mais tempo. Fiquei uma semana e meia internada.

Depois desse último episódio de internamento, talvez no ano seguinte, a minha oposição aos medicamentos começou a esmorecer e esforcei-me por perceber de que se tratava a minha doença. No entanto, foi apenas durante o ensino secundário que me apercebi que não era assim tão diferente das outras pessoas da minha idade: tinha apenas de aprender a conviver com o meu pequeno defeito patológico. Foi nessa altura que saí da concha e comecei a dar-me mais com as pessoas e a sentir-me uma pessoa normal, dentro do possível, porque há sempre momentos de fragilidade e dúvida, há sempre uma réstia de insegurança que não desaparece.